Julio César Fernandes
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Textos

Sr. Marcelino - História de Uma Serenata

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Minha querida cidade da infância era pálida e simples. Suas manhãs, tardes e anoiteceres pareciam iguais; a luz do sol, as estrelas e o céu da noite eram as únicas cores que precisávamos. A minha cidade tinha isso.

 

Após o amanhecer dos longos dias silenciosos, a solidão era quebrada apenas pelas brincadeiras dos meninos – pega-pega e outras diversões. Depois das tarefas escolares, meu destino era correr pelos rios e sítios. Estar ali era como viver em um parque de diversões, uma verdadeira Disneylândia, só que melhor, pois aqueles espaços eram apenas meus.

 

Jesus! Passaram-se tantas décadas e nunca me esqueci daqueles momentos. Uma criança pobre podia ser tão feliz, correndo pelo rio, sobre pedras pontiagudas e lodosas, sem um único acidente.

 

A rua onde morava era paralela à avenida principal, a Av. 7 de Setembro, a apenas 200 metros do prédio dos Correios, onde tive meu primeiro emprego. Nunca imaginei que um dia teria o privilégio de trabalhar ali. Mas voltemos às cores e silêncios que preenchiam meus dias.

 

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Imagem antiga da cidade de Baturite - CE. 
 

Guardo com carinho o local dos nossos encontros, atrás do prédio dos Correios, em frente à casa do Sr. Marcelino. Havia um pedaço de muro, uma murada inacabada, que se tornara nosso “coreto”.

 

Ali, ao lado do belo muro da residência do saudoso Sr. Raimundo Arruda, sempre gentil comigo durante as entregas de correspondências, vivíamos momentos inesquecíveis. Não guardei bens materiais, mas aquelas boas lembranças permanecem comigo. Pessoas que me trataram com decência e carinho.


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Sede dos Correios em Baturité. Ao lado a residência do casal Sr. Raimundo Arruda e D. Noeme Távora Arruda. 

 

Convivi muitos anos com a família do Sr. Marcelino e da Dona Edith Filomeno, e seus filhos: José Messias, Bosco Barão, Pedro (Pedrinho), Joaquim (Quincas) e Dr. Antônio Pinto. Pedrinho e Quincas eram violonistas talentosos, e os demais, ótimos cantores. Zé Messias sempre estava a cantarolar: Dó, Ré, Mi, Molambo, Marina, Sá Marina e outros clássicos.

 

Quase sempre, nas tardes e anoiteceres, nos reuníamos no coreto, sombreado por uma mangueira (manga rosa), cantando as músicas do nosso tempo. O Sr. Marcelino deixava suas ferramentas e cachos de bananas para nos encontrar. Ele cuidava de seu pequeno sítio com grande devoção e improvisava uma confeitaria, de onde saíam os mais saborosos bolos Sousa Leão e Luís Felipe.

 

No sítio, fruteiras como mangueiras, pitombas e goiabeiras alegravam o ambiente, e os pássaros pareciam felizes. Finalmente, o Sr. Marcelino chegava, sentava-se manso, atento ao som do violão, e sempre cantarolava músicas de Sílvio Caldas, Orestes Barbosa e Pixinguinha.

 

As tardes logo se transformavam em noites. Naquela época, ainda não havia energia elétrica gerada pela usina de Paulo Afonso; a cidade era iluminada por um gerador que parava às 21h, deixando-nos sob o céu estrelado. As casas iluminadas por lamparinas criavam uma atmosfera única.

 

A partir dessa hora, as noites pertenciam aos seresteiros e boêmios: Inácio Caneta, Sousa e outros que se esgueiravam pelas esquinas em busca de uma serenata. Os frequentadores do nosso coreto se repetiam, e aquele senhor de passos lentos se juntava a nós, sempre ansioso por cantarolar uma canção ou contar uma boa história.

 

Dona Edith costumava observar, entreabrindo a porta principal, com seu olhar atento atrás das lentes multifocais, certificando-se de que o Sr. Marcelino estava bem. O coreto, um estirão de muro de cimento e tijolos, abrigava aqueles que não tinham mais o que fazer. A cidade se acalmava, todos se preparavam para dormir e esperar o novo amanhecer.

 

Era a vida que tínhamos. O semblante do Sr. Marcelino, marcado pela lida do dia, era um testemunho disso. Ele voltava do sítio, vestindo calças com dobras até o meio da canela e uma blusa similar às regatas atuais, mais parecida com os uniformes do Exército, já que retirara a blusa para se proteger do calor.

 

As conversas nunca cessavam; sempre havia alguém a cantarolar as melodias de então. O som da época de ouro preenchia o ar, enquanto seu Marcelino entoava os hinos: "Deusa da Minha Rua", "Rosa", "Chão de Estrelas" e tantas outras.

 

Quando o silêncio se acentuava, Pedrinho dedilhava suavemente seu violão, com a certeza de quem sabia onde colocar as mãos e arpejar as cordas. O Sr. Marcelino contava suas histórias, e nós ouvíamos em silêncio, todos atentos.

 

As ruas eram escuras, mas naquela noite de lua cheia, tudo estava combinado. Zé Amâncio, exímio violonista, não havia conseguido o “alvará” de sua esposa para a noitada que se avizinhava, mas buscara um jeito de fugir pela porta dos fundos, levando o violão debaixo do braço. Este era o plano, confidenciado à boca miúda.

 

Assim, mais uma noite de serenata se consagrava. No dia seguinte, todos comentavam sobre uma linda serenata que embalara as noites, quebrando o silêncio daquela cidade carente de luz, alegria e sonhos.

 

Uma das maravilhas de uma cidade sem energia elétrica: nas noites de lua cheia, todos podiam contar as estrelas sobre suas cabeças e alcançá-las apenas estendendo as mãos.

 

Certo dia, o Sr. Marcelino contou que não conseguia adormecer e decidiu dar uma volta. Desceu pela avenida 7 de Setembro, adentrou a rua do cinema, passou pela bodega do senhor Adauto Segundo e chegou à esquina em frente à igreja Santa Luzia.

 

Naqueles tempos, os mais velhos contavam que, nas primaveras, era comum sentir os ventos que vinham do Aracati. Mas então, ouviu acordes de um violão à distância. Seria um violão? Ele se perguntou. Caminhou em direção à Av. Dom Bosco e, logo, confirmou que seus ouvidos não o enganaram.

 

Enquanto narrava a história, o Sr. Marcelino olhava para nós, incrédulo, mas continuava, revivendo aquele momento eternizado em suas melhores lembranças.

 

"Tem um violão na rua! ... E eu não vou dormir, não," assegurou ele.

 

"Atravessei o calçamento em frente à igreja de Santa Luzia e continuei pela pracinha, passando pelo único posto de gasolina da cidade, de propriedade dos Vianas. Quando cheguei ao início da avenida Dom Bosco, ouvi toda a orquestração: dois violões, um fazendo acompanhamento e outros solos, enquanto outros faziam contracanto."

 

"Era uma coisa linda de se ouvir e ver, como se um pedaço de céu tivesse vindo assistir àquela serenata." Depois, soube que se tratava do aniversário de uma irmã do colégio Nossa Senhora Auxiliadora.

 

Creio ter ouvido essa história mais de uma vez. E lá se vão cinco décadas, mas nunca me esqueci do que o Sr. Marcelino nos contou. Agradeço a Deus pela bênção de tê-lo conhecido e por nunca tê-lo interrompido. Sempre que contava a mesma história, era como se estivesse contando pela primeira vez – mas a forma era diferente, com mais paixão, ênfase e emoção.

 

As pausas acentuadas e um olhar distante, como se estivesse vivendo aquele momento novamente, prendiam a atenção de todos.

 

Ficou a saudade daquela família maravilhosa que me acolheu como se eu fizesse parte dela. Tenho saudades das pessoas, das alamedas, dos corredores e longos jardins daquela casa, onde vivemos tantas histórias.

                                    ***

 

[*] As árvores eram bem cuidadas. 

Nota 1. Os penetras das noites de serestas perseguiam os seresteiros - só pra fazer parte. Não raro, a gente, fingindo afinar a terceira corda do violão [Sol], apertava até quebrar, pra encerrar a conversa e expulsar o mal visitante;

[**] Fiquei nos Correios sete anos. Residi na casa (parte superior da sede) uns 4 anos e alguns meses. 

 

Sr. Marcelino [Arcelino Filomeno da Conceição - Homem íntegro, excelente pai e chefe de família. Homem doce, de gestos nobres - me tratou como se eu fosse um filho. Saudades! 


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Julio Cesar Fernandes
Enviado por Julio Cesar Fernandes em 04/12/2024
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