Na infância, eu trilhava os mesmos caminhos, quando as matas densas e as ingazeiras formavam copas sobre a relva e os cafezais. Ficava maravilhado ao ouvir os pássaros cantando, fazendo acrobacias em torno dos cajus e mangas.
As frutas caíam pelo chão, servindo de alimento para pássaros, formigas, sarguis e tijubinas. Provavelmente, com os pés descalços, caminhava por vários quilômetros entre as matas, atravessando rios e riachos, pulando sobre cercas de arame farpado sem nunca ser pego por bichos, espinhos ou unhas de gato.
Era apenas um menino. Não vivia sorrindo, mas as travessuras eram tantas - inocentes. Mesmo a baladeira carregada à tiracolo era apenas um ornamento de guerra; não acertava nada que voasse ou cantasse.
Os dias se repetiam, cada pedra do caminho eu conhecia. Tinha pavor de alturas, subir em árvores somente até o limite de altura que sabia pular sem me machucar.
Nas águas de cheias que atravessavam a cidade, lá estava eu, sem um mínimo medo. Mas sabia que não tinha preparo para nadar em açudes ou adentrar no mar - banho de cuia ou em bica de chuva. Assim era ser menino na década de setenta.
Dias a fio soltando arraias, craque no pião, no jogo de bilas, peladas em chão calçado de pedras - com alguns arranhões, mas sem nunca quebrar um único dedo ou osso qualquer.
Só lembro de ter deixado de ser menino quando comecei a frequentar a biblioteca municipal, ler revistas em quadrinhos de um querido amigo, aprender a desenhar, tocar um instrumento e cantar.
Essas coisas me salvaram. Não fumávamos cigarros, não bebíamos bebida alcoólica. No primeiro emprego, um pouco do menino, da contabilidade e do uso da máquina Facit e do desenho de modelos para as Senhorinhas que não podiam comprar vestidos prontos.
No segundo emprego, só não aprendi a usar o Morse - já estava num canto da sala. O radioamador, teletipo e uma máquina de datilografia foram excelentes aliados.
Se aquele jovem de vinte anos me visse digitando no iPhone com um único dedo, diria: não conheço essa criatura! Cadê aqueles cabelos longos e encaracolados?
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Ps.:
Querido amigo, Dr. Ótono, bom dia! 🌻
Os fatos narrados no texto Remendos da Vida ocorreram durante minha adolescência em Baturité, Ceará e outras cidades da Serra de Baturité [Mulugu, Guaramiranga etc.
Atualmente, as paisagens e naturezas do entorno da cidade de Baturité foram dizimadas pela especulação imobiliária e ações de desamor à natureza. Os rios foram soterrados e muitas aves, plantas e pássaros, também.
Mas em Guaramiranga, Mulungu e Pacoti as ocupações por pousadas e outras atividades ocorreram de forma mais harmônica com a natureza.
A Serra de Baturité é protegida pela legislação / Área de Proteção Ambiental.
Fico muito honrado com sua leitura aos meus escritos, os quais os faço mais por terapia e hobbie.
Abraço, Julio César.
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Título: Remendos da Vida
Autor: Júlio César
Série: Memórias
Foto: Catracalivre.com.br